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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A viagem (Cloud Atlas) - 2012


A viagem (Cloud Atlas) – 2012, Cor, 172 minutos.
Origem: Alemanha, EUA, Japão, Singapura.
Gênero: Drama, Romance, Mistério, Ficção-Científica.
Direção: Tom Tykwer, Andy e Lana Wachowski.
Roteiro: Tom Tykwer, Andy e Lana Wachowski.
Fotografia: Frank Griebe e John Toll.
Trilha sonora: Tom Tykwer, Rinhold Heil e Johnny Klimek.
Lançamento no Brasil: 11 de janeiro de 2013.


Por Cleidson Lourenço

A viagem (Cloud Atlas), mais recente esforço dos irmãos Wachowsky, desta vez juntos a Tom Tykwer, é fascinante. Ainda que a realização não alcance plenamente a ambiciosa premissa, o resultado é mais que satisfatório tanto pelo saldo emocional quanto pelos questionamentos que suscita.

O roteiro, adaptação do romance homônimo de David Mitchell pelos diretores do longa, apresenta seis histórias de gêneros diversos, situadas em diferentes épocas e lugares, cruzando-as a partir de um princípio derivado de correntes religiosas, científicas e filosóficas, como a teoria do caos, princípio da ação e reação, física quântica, espiritismo e carma: todo ato de bondade, assim como todo crime, repercute através dos tempos, gera reações equivalentes e molda o curso dos acontecimentos. São histórias inicialmente interessantes, mas de decorrer previsível. Funcionam graças ao dinamismo da montagem, nos permitindo vislumbrar cada história tempo suficiente apenas para encontrar um gancho visual ou narrativo que nos empurre para a próxima.

A escolha de utilizar os mesmos atores em todas as histórias, aludindo à ideia de reencarnação, dá certa organicidade à narrativa. Alguns estão irreconhecíveis em suas transformações graças ao trabalho da equipe de maquiagem. Tom Hanks, Halle Berry, Jim Broadbent, Hugo Weaving, Jim Sturgess, Doona Bae e Ben Whishaw garantem boa parte do espetáculo, oferecendo performances esmeradas em papéis que variam não só em personalidade e idade, mas em fenótipo e até mesmo sexo. Assim, Tom Hanks personifica desde um médico inescrupuloso do século XIX a um cientista nuclear de meia idade nos anos 70, ou mesmo um sobrevivente numa precária sociedade pós-apocalíptica, sempre mantendo um nível de detalhamento sobrecomum em suas composições, considerando a quantidade de papéis que representa. Outras grandes atuações vêm de Jim Broadbent, Doona Bae e Hugo Weaving, que aqui interpreta todos os vilões da película.

Tom Hanks em seus vários papéis.
A eficiência da maquiagem na composição dos personagens é uma faca de dois gumes. Apesar de apresentar excelência na inserção de próteses e pequenos detalhes que ajudam a compor os personagens, a ousadia na transformação completa de fenótipo não é bem realizada, resultando num artificialismo escancarado, como no caso de Halle Berry interpretando a judia Jocasta Ayrs, caucasiana. Pontos de excelência técnica são a direção de arte e figurino, competentes em recriar estilos visuais de épocas históricas e em imaginar os cenários do futuro. Atenção especial à fascinante Neo Seul, onde a prevalência de um capitalismo em nível muito acentuado transparece em cada detalhe, como na arquitetura, estritamente funcional. Toda intervenção estética, mesmo a cor, é projetada por holograma sobre o concreto cinza.

Halle Berry como Jocasta Ayrs
             A trilha sonora, composta por Tom Tykwer com colaboração de Reinhold Heil e Johnny Klimek é riquíssima, passeia com maestria por extremos de uma narrativa que vai do histórico ao futurista e apresenta variações muito imaginativas do tema principal, um trabalho memorável que desde já entra para minha lista de favoritos. A fotografia segue a cartilha do épico, oferecendo planos gerais para destacar os belos e sofisticados cenários, closes para as acrobacias emocionais dos atores em seus vários papéis, planos detalhe para destacar elementos de ligação entre as narrativas. O maior truque é que estas ligações vão ficando mais explícitas ao decorrer do filme, de modo que em determinado momento as reviravoltas passam a acontecer em cadeia, e o clímax compartilhado é multiplicado por cada história.

"Eu não serei submetida ao abuso criminoso"

Por detrás de todas as camadas teóricas que misturam filosofia, ciência e religião na tessitura de uma trama capaz de emular a complexidade da vida, o ponto de discussão mais interessante da obra, contudo, é o ideológico. A viagem lida o tempo todo com dois extremos morais, um baseado na sobrevivência do mais apto expresso num darwinismo social cujo pináculo é uma versão extremada do capitalismo, que se choca com outro, de inspiração socialista, baseado num profundo senso de comunidade a pregar o pensamento de que nossas vidas não pertencem a nós mesmos, mas à coletividade. A narrativa se constrói sobre o confronto dessas ideias e a afirmação desse ideal subversor a nos incitar contra toda restrição à liberdade.

Localizemos a obra historicamente: num momento em que a conjuntura política mundial é instável, palco de lutas frequentes sendo travadas contra o cerceamento de direitos, não podemos fechar os olhos para a ousada mensagem da obra dos Wachowsky. Diferente de Matrix, aqui eles não barateiam filosofias em prol do desenvolvimento da história, mas moldam toda a arquitetura narrativa, sacrificando até o que poderia ter de mais complexo e enriquecedor do ponto de vista cinematográfico, para expandir a legibilidade dessa mensagem à sua audiência. Com muita honestidade, A viagem exemplifica o exercício de coragem que propõe a seu espectador.



sexta-feira, 20 de abril de 2012

Nao me abandone jamais (Never let me go) - 2010

 Não me abandone jamais (Never let me go) – 2010, Cor, 103 minutos.
Direção: Mark Romanek.
Roteiro: de Alex Garland, baseado no romance de Kazuo Ishiguro.
Cinematografia: Adam Kimmel.
Trilha Sonora: Rachel Portman.
Elenco original: Carey Mulligan, Andrew Garfield, Keira Knightley.
Lançamento no Brasil: 18 de Março de 2011.













Não me abandone jamais é uma adaptação do diretor Mark Romanek de um romance homônimo, escrito por Kazuo Ishiguro. Neste filme, somos transportados a uma realidade alternativa, na qual, em 1950, a técnica de clonagem já foi completamente dominada e a humanidade teria encontrado a cura para todas as doenças, superando a expectativa de vida de 100 anos. Essa utopia acaba se revelando, na verdade, uma realidade distópica à medida em que nos é permitido saber por quais meios a medicina alcançou esse “milagre”.

Somos então levados a acompanhar a rotina de Kathy (Carey Mulligan), Tommy (Andrew Garfield) e Ruth (Keira Knightley), estudantes de um rígido internato inglês. Nele, as crianças são tratadas com uma atenção severa e um monitoramento constante, incentivadas a praticar esportes, encenar interação social através de peças, e produzir arte. Através do discursos diários, proferidos pela diretora Emily (uma ótima atuação de Charlotte Rampling) elas são convencidas de que são crianças especiais.



O roteiro de Alex Garland entrega, entretanto, elementos para pensarmos o contrário. As crianças não exibem dotes especiais, como uma inteligência superior, ou força física, nem mesmo possuem aptidão sobrecomum para a arte. Logo percebemos  que o internato não é um espaço de ensino, e sim de alienação: um lugar onde as crianças são preparadas, moldadas para cumprir seu "papel" social. Numa cena de particular força e simbolismo, uma professora inquire um aluno sobre o motivo de este, ao jogar beisebol com amigos, não apanhar a bola que caiu para além dos limites da escola. Obtém como resposta dos estudantes estórias mirabolantes sobre a morte dos que violaram essa fronteira, contadas com convicção assustadora. Essa crença absoluta nos valores ensinados pela instituição as prepara para aceitar o destino que lhes será posteriormente revelado.

 Num rompante de inconformismo com a postura mantida no lugar, uma professora recém contratada quebra o silêncio e expõe às crianças o verdadeiro caráter de sua existência “especial”: eles não teriam uma vida própria, nem um destino comum. Sequer chegariam a viver plenamente a maturidade. Seriam apenas clones, repositores de órgãos para as pessoas “reais”. A seu tempo, pouco após atingirem a fase adulta, seria submetidos a ciclos cirúrgicos nos quais, gradativamente, teriam seus órgãos retirados e dispostos para o benefício de outros. Essa ação, institucionalizada, legalizada, era denominada doação.

Esse contexto que pode parecer bizarro ao leitor, é no filme, entretanto, mostrado com naturalidade, o que favorece a criação de uma atmosfera de desolação do espectador frente ao conformismo dos personagens. Contudo a escolha de ter criado, dentro de um contexto tão rico para análise política e econômica, uma triste história de amor talvez desperte polêmica: Kathy, ainda no internato, se apaixona por Tommy mas não revela publicamente seu sentimento. Sua companheira de internato Ruth, no entanto, ao perceber o interesse da amiga, investe sobre Tommy e engata um relacionamento que se mantém mesmo quando alcançam a idade adulta, e deixam o internato.



No breve espaço de tempo antes das doações, Kathy tem que conviver diariamente com o romance entre Tommy e sua amiga. Frente à impossibilidade de viver seu amor, ela decide se tornar assistente nas doações de outros clones, conseguindo adiar a sua própria por um tempo. Por obra do acaso, Kathy volta a reencontrar seus amigos, e por intermédio de uma arrependida Ruth, consegue viver por um curto período de tempo o amor negado anteriormente. Após perder Tommy em sua terceira doação, e descobrir que em breve ela iniciará seu ciclo, Kathy entrega uma reflexão bastante humanista, senão socialista: “será que as pessoas a quem servimos não passam pelos mesmos problemas que nós?”. A incompletude, incapacidade de plena realização frente ao tempo finito que nos resta  é o nível que nos iguala, é o que nos une na condição humana, independente da nossa posição na cadeia alimentar social.



Quanto aos aspectos técnicos, a fotografia consiste basicamente em planos abertos de paisagens, na maioria das vezes vazias, campos com poucas árvores, ruas e praias desertas, compondo o ambiente de desolação e simbolizando o apartamento social dos personagens. A elegante trilha sonora de Rachel Portman é igualmente eficiente, complementando as imagens de um filme que nos seus momentos principais evoca uma tristeza que angustia, sem cair no melodrama. A atuação de destaque sem dúvida é a de Carey Mulligan e sua Kathy, que entrega em seu olhar perdido, tanto a conformação quanto a curiosidade, a vontade de achar o significado para sua existência num contexto tão opressor. 

Apesar do poder dos temas abordados, o que mais me deixou perplexo sobre esta ficção científica foi sua diferença em relação às distopias produzidas durante as décadas de 80, 90. Enquanto obras como Brazil (1985) usavam apenas indícios presentes na realidade do período como matéria prima para a ficção, projetando um futuro caótico, geralmente uma versão exagerada da realidade, em Não me abandone jamais não há nada que seja improvável.  Suas analogias remetem a situações bem reais, bem calcadas no nosso presente: em que nível as crianças do internato diferem daquelas dos países pobres, vítimas de sequestro, ou vendidas para o tráfico de órgãos?  Nos países em que a vida vale pouco frente à demanda do capital, pessoas são exploradas, mutiladas, e repostas pelo estoque de mão de obra barata, formado por... outras pessoas.

Mark Romanek - Diretor

A imposição do capital sobre a ética e a moralidade já está acontecendo, e quando estamos muito alienados sobre nossa realidade é bom encontrar uma fantasia engajada que nos reapresente a ela, nos ajude a reconciliar, nos faça re-conhecer.