Millennium Actress (Sennen Joyû) – 2001, Cor, 87 minutos.
Origem: Japão.
Gênero: Animação, drama, romance.
Direção: Satoshi Kon.
Roteiro: Satoshi Kon, Sadayuki Murai.
Fotografia: Hisao Shirai.
Trilha sonora: Susumu Hirasawa.
Lançamento no Brasil: (ainda não lançado).
Sobre o diretor
Satoshi Kon foi um diretor muito ousado. Nascido em 1963 e falecido em 2007
devido a um câncer pancreático, foi assistente e discípulo de Katsushiro Otomo,
mente por trás da criação de Akira, tanto o mangá quanto o anime que se
tornou um clássico mundial. A expertise adquirida através do contato com o
mestre foi empregada, entretanto, para dar forma a um estilo completamente
seu.
Escrevia os roteiros dos filmes que dirigia, sempre utilizando uma abordagem de forte cunho psicológico, aliada a uma
estética surrealista, quase onírica, compondo uma narrativa em que realidade e
fantasia pareciam se confundir. Uma tese permeia todas as suas obras: Estas duas esferas
da existência, fantasia e realidade, seriam assim tão diferentes? Se o que julgamos enquanto fictício é
capaz de gerar uma experiência possível de ser sentida, compartilhada,
vivenciada, ela não se materializa e passa então a ser parte do real?
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Satoshi Kon. |
Para defender
tal premissa, Kon criou roteiros muito complexos, que em mãos incapazes poderiam resultar em catástrofe. Mas demonstrando forte domínio da
técnica e uma sensibilidade incomum, ele conduziu com maestria suas audaciosas obras, conseguindo um grau impressionante de imersão.
Em Perfect Blue (1997), por exemplo, acompanhamos o drama psicológico da cantora Mima, que
encerra precocemente sua carreira na música pop japonesa para tentar a de atriz, mas quando as pressões da nova profissão entram em choque com sua antiga personalidade pública acaba entrando em colapso. O contexto sempre é muito rico: no Japão, como aqui no ocidente,
as artistas pop têm de criar uma personagem para o palco. As garotas, geralmente bem jovens, devem personificar o tipo angelical, a fim de se encaixar com o modelo de pureza idealizado pelo público. Mima está envelhecendo, e busca no cinema maior longevidade no show business. Mas para o antigo público de Mima as atrizes
não são bem vistas: são mulheres subversivas, não representam, e sim vivem o que fazem no estúdio, são sujas. A violência da mudança de contexto leva Mima
a enxergar a si mesma enquanto duas: a atriz e a personagem angelical a lhe julgar, perseguindo-a nos espelhos, nos vagões do metrô. À medida em que Mima vai perdendo sua referência de realidade, somos induzidos a compartilhar sua paranóia. Qualquer semelhança com Cisne Negro de
Darren Aronofsky não é mera coincidência.
Já em Páprika
(2006), cientistas desenvolvem uma máquina capaz de tornar os sonhos
visualizáveis, graváveis em vídeo e compartilháveis, permitindo então o estudo de doenças psicológicas através
da viagem ao inconsciente do paciente. Contudo um dos aparelhos é roubado e usado por terroristas para atacar os cientistas envolvidos na criação da tecnologia,
alterando sua percepção de realidade e os prendendo num pesadelo compartilhado.
Para descobrir quem está por trás disso e suas intenções, uma doutora desenvolve
um alter-ego chamado Páprika, com liberdade irrestrita para passear pelos
sonhos. A metáfora aqui é com a internet, um mundo onde podemos ser qualquer
pessoa, um espaço que outorgamos o adjetivo de virtual, mas para nossa mente funciona como uma extensão do real. O empréstimo da ideia pelo cinema do ocidente foi mais
brando: em A origem, de Christopher Nolan, encontramos a premissa de uma máquina
para compartilhamentos de sonhos, mas a filosofia desenvolvida é totalmente
diversa.
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A doutora Atsuko, à direita, e seu alter-ego, Páprika. |
Depois dessa
introdução, podemos falar da que considero a obra mais emblemática e poderosa de
Kon: Millennium Actress (2001) conta a história de Chiyoko, uma atriz que
abandona a carreira no auge do sucesso, mas decide contar sua vida e os motivos
de sua reclusão antes da morte. Voltando ao passado de Chiyoko na intenção de
entender o mistério, somos lançados numa narrativa que mescla memória, fantasia
e realidade com uma profunda reflexão sobre a natureza do cinema em si.
Resenha
O secular estúdio cinematográfico Ginei foi demolido. Na tentativa de salvar parte da
história do cinema japonês o produtor Genya e seu cameraman resgatam tudo o que
podem para produzir um documentário. Porém, falta cobrir a maior lacuna desta
história, o paradeiro de Chiyoko - estrela de maior sucesso do Ginei - distante das
câmeras há mais de trinta anos. Descoberto o endereço, ambos sobem uma íngreme
ladeira em direção à residência da atriz, quando o cético cameraman exclama que
ela já deve estar velha e gagá. Recebe como resposta uma bolsada na cara: "- Ela
nunca envelhecerá!", diz Genya, fã incondicional de Chiyoko.
Lá chegando,
para a surpresa de Genya, encontram uma velha e adoecida Chiyoko. Como presente
para a atriz, o produtor lhe entrega uma pequena chave, algo do seu passado que a
deixa muito pensativa. Ao perguntar o que a chave abre, recebe como resposta:
“- Essa é a chave para a coisa mais importante que existe”. Câmera em punho, eles filmam o depoimento da
atriz, que resolve abrir sua história e contar o verdadeiro motivo para seu
envolvimento com o cinema.
Existe um bom trabalho de contextualização histórica, situando o nascimento de Chiyoko em
1923, ano em que um grande terremoto arrasou metade do Japão. A partir dessa
década, o país se envolve crescentemente nos acontecimentos que culminarão na
Segunda Guerra Mundial, e o filme passeia pelos efeitos do conflito como também pelas repercussões do pós-guerra no oriente. A
abordagem inicial é de uma genialidade fantástica.
Enquanto
a atriz conta sua infância, visualizamos fotografias de sua época escolar.
Nelas, várias crianças sorridentes seguram pequenas bandeirolas do Japão, enquanto Chiyoko ostenta uma expressão de incômodo. Ao contrário de
todos os elementos estáticos da fotografia, a pequena estudante se movimenta
entre os fantasmas de seu passado, corre entre eles.
A
fotografia, como sabemos, foi a ancestral do cinema e roubou da pintura o posto
de melhor forma de representar o real. Contudo, a natureza da fotografia
impunha um limite de envolvimento entre o observador e a realidade retratada: a
imagem estática aparece como o vestígio de um acontecimento já ocorrido, um
momento no espaço-tempo do qual ele não participa, gerando uma sensação de
exterioridade. O cinema se sobrepôs à fotografia com uma melhoria colossal
nesse quesito, já que com o movimento, a situação retratada aparece como um
acontecimento em curso, sugestionando nossa mente a aceitar a realidade do fato, revestindo a fantasia do que é mostrado com a substância dos
nossos anseios, nossas experiências.
Enquanto a
pequena Chiyoko passeia pelas ruas de sua infância, nos deparamos com Ganey e
seu cameraman, materializados na reconstituição da memória da atriz, como
figurantes curiosos. Kon realiza outra alegoria, desta vez sobre a relação de
envolvimento dos espectadores com a história que lhes é contada, mostrando como
somos absorvidos e impelidos a criticar, analisar o que nos é exposto, influenciando
e nos deixando influenciar pela obra cinematográfica.
Mas voltemos à história. Adolescente, Chiyoko conhece um fugitivo da polícia, e por ele se apaixona perdidamente. Como prova de amor, dele recebe uma chave, um objeto para os unir após sua partida e que deve ser devolvido, numa promessa de reencontro. Enquanto esse amor amadurecia em seu coração, recebe a proposta de um diretor para estrelar em um de seus filmes. Coincidentemente, o set de filmagens ficava localizado próximo do local para onde o fugitivo teria debandado. E assim, ela decide ir na esperança de reencontrar seu amado.
Mas voltemos à história. Adolescente, Chiyoko conhece um fugitivo da polícia, e por ele se apaixona perdidamente. Como prova de amor, dele recebe uma chave, um objeto para os unir após sua partida e que deve ser devolvido, numa promessa de reencontro. Enquanto esse amor amadurecia em seu coração, recebe a proposta de um diretor para estrelar em um de seus filmes. Coincidentemente, o set de filmagens ficava localizado próximo do local para onde o fugitivo teria debandado. E assim, ela decide ir na esperança de reencontrar seu amado.
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Acontece que os
papéis oferecidos para Chiyoko apresentam uma semelhança intrigante com sua história: sempre
mulheres que partem em busca de seu amor, porém sem nunca encontrá-lo. Tal semelhança permite que ela
realize atuações extraordinárias, tornando a idéia do reencontro
dos amantes, para o diretor, algo absolutamente desinteressante.
As semelhanças entre a busca da atriz e os roteiros se intensificam, reeditando fragmentos de seu passado em cenas situadas, por exemplo, no Japão Medieval, como uma princesa em busca de seu amado, fugitivo do imperador, ou como uma gueixa apaixonada, mas proibida de viver esse sentimento devido à sua condição. A edição de Satoshi Terauchi funciona brilhamentemente no sentido de costurar com coesão a trama dos filmes à realidade de Chiyoko, ajudando Kon a alcançar o seu objetivo: assim como a atriz, perdemos por alguns momentos a percepção do que é verdade e o que é ficção em sua vida. Ficamos totalmente imersos em sua experiência. A trilha sonora de Susumu Hirasawa é igualmente brilhante, e cumpre um papel fundamental para a construção da atmosfera do filme, que varia entre vibrantes cenas de ação, momentos de melancolia e confusão vividos pela protagonista.
As semelhanças entre a busca da atriz e os roteiros se intensificam, reeditando fragmentos de seu passado em cenas situadas, por exemplo, no Japão Medieval, como uma princesa em busca de seu amado, fugitivo do imperador, ou como uma gueixa apaixonada, mas proibida de viver esse sentimento devido à sua condição. A edição de Satoshi Terauchi funciona brilhamentemente no sentido de costurar com coesão a trama dos filmes à realidade de Chiyoko, ajudando Kon a alcançar o seu objetivo: assim como a atriz, perdemos por alguns momentos a percepção do que é verdade e o que é ficção em sua vida. Ficamos totalmente imersos em sua experiência. A trilha sonora de Susumu Hirasawa é igualmente brilhante, e cumpre um papel fundamental para a construção da atmosfera do filme, que varia entre vibrantes cenas de ação, momentos de melancolia e confusão vividos pela protagonista.
Chiyoko vivencia em toda sua filmografia um milênio da história japonesa esperando que
sua imagem pudesse dar uma indicação de como encontrá-la. Ela somente abandona a carreira ao perceber que o tempo
passou, e a feição jovem pela qual o fugitivo se apaixonara não mais existe.
Genya, o produtor, descobre que o fugitivo faleceu a muito tempo, não resistindo ao rigoroso interrogatório imposto pela polícia à época. Quando decide solucionar o mistério, o estado de saúde da atriz se agrava. Consegue chegar a tempo de ouvir suas últimas palavras: “A parte que eu realmente amei foi procurá-lo.”.
Satoshi Kon
encerra sua obra com uma reflexão importante sobre o fascínio que o cinema exerce sobre nós: ao final, a trajetória de uma pessoa que devotou sua vida em
busca de um fantasma não nos parece nem um pouco patética. Assim como a atriz, o
espectador não teria acompanhado ao longo de quase duas horas de projeção uma ilusão? O diretor, então, se profissionaliza em forjar o convencimento a partir da ficção. O que saímos ganhando é algo que não se pode precisar ao certo o grau de
realidade, mas é um laço poderoso a nos unir em torno da paixão pelo cinema: o compartilhamento de nossas experiências.
9 comentários:
Cara, gostei muito da tua resenha. Parece uma obra-prima, hein?
Anotado e já vou procurar. Esse é o tipo de animação que me anima, com o perdão do trocadilho.
Abs!
Poxa Celo, obrigado pela visita! É sim, e o melhor, emociona sem ser melodramático, é tudo na medida. A genialidade da narrativa de Kon, os detalhes e os símbolos, tornam o filme maravilhoso, e nem um pouco difícil de entender. O trocadilho foi ótimo, rs. Abração!
Obra-prima do Satoshi Kon, sem dúvidas. Belíssimo texto, até me peguei aqui refletindo sobre, sempre bom esse compartilhamento de pensamentos.
Obrigado Nelson! Eu fiquei refletindo alguns dias sobre como esse filme mexeu comigo, principalmente pensando o quão brilhante era o Kon. Muita vontade de ter podido acompanhá-lo por mais tempo... Espero que você volte sempre, será muito bem-vindo! Abração!
Nossa, parece imperdível. Vou conferir. Não li a resenha pois gosto de ver os filmes sem saber muito sobre eles, aliás, boa ideia separar.
Rsrs, e eu sou o rei dos spoilers, rs. Mas o legal é ler depois de ver mesmo, porque eu analiso as sequências e mostro como ele defende sua tese. Obrigado pela visita, espero que você se divirta, se emocione e ame o filme como eu amei. Abração!
Millenium Actress talvez seja meu filme favorito do Satoshi, e é meio difícil de decidir isso, já que mesmo (infelizmente) tenha feito poucos trabalhos, são animações de uma qualidade soberba. Gostei bastante de sua resenha, dos simbolismos que interpretou, dá uma clareada melhor sobre a minha percepção sobre o filme. A forma como a narrativa vai sendo construída intercalando (e até mesmo se misturando) as lembranças da atriz com as cenas de seus filmes é simplesmente espetacular e envolvente.
É uma pena que um diretor do gabarito do Satoshi teve de nos deixar de forma tão precoce. Imagine o que ele ainda poderia ter produzido se ainda estivesse vivo. Sem dúvida, um gênio e uma tremenda referência para a animação japonesa.
Vitor, obrigado pelo comentário, fico feliz que tenha gostado do texto e compartilho desse sentimento de perda, Satoshi me inspirava profundamente, talvez seja o maior responsável por treinar meus olhos para perceber melhor cinema, fico igualmente triste por imaginar um futuro sem um novo belo delírio dele. Rezemos para que a Mad finalize a última animação dele, seria um lindo tributo!
Adorei essa crítica! Me fez enxergar mais sobre o filme e pensar que não desfrutei tanto quanto deveria dele.
Parabéns por mais uma excelente demonstração de organização do discurso, amigo. Quero mais textos assim. :-)
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