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domingo, 7 de abril de 2013

O som ao redor - 2012



Por Cleidson Lourenço.

A classe média está sob os holofotes, e não é de hoje. Nos últimos dez anos as transformações político-econômicas propiciaram uma mobilidade social sem precedentes, permitindo a superação da linha da pobreza para um enorme contingente de indivíduos e também a emergência dos menos pobres ao valioso status social de classe média. Como um rastilho de pólvora, as mudanças rapidamente provocaram uma corrida por informação sobre essa nova configuração: o censo se modernizou, os questionários gradualmente se tornaram mais intrusivos. Ofegantes, as empresas precisavam decodificar um perfil para tornar a publicidade mais sensível; os partidos necessitavam saber seus anseios e a partir deles afinar a retórica e torna-la atraente.

Tanta atenção provocou incômodo, e da “nova classe média” as generalizações passaram à especulação sobre toda a classe. Afinal, o que ela representaria? A opinião recorrente a descreve como uma trincheira, protegendo a elite à medida em que absorve seus ideais e estilos de vida, enxergando-se como pertencente a ela. No entanto uma pergunta potencialmente mais esclarecedora é também a mais rara: de onde essa classe surgiu, como sua história ajuda a entender a conjuntura atual? Essas questões parecem contagiar Kleber Mendonça Filho, que debruça suas lentes (e microfones) sobre a Recife atual, e no seu passado escravista, para representar o que pensa ser as ambições e preocupações da classe média.

Divido em três atos, o filme focaliza um bairro nobre da capital no momento em que uma equipe particular de segurança aparece oferendo seus serviços. Não há uma trama delimitada e sim um passeio da narrativa pelo cotidiano e relacionamentos dessa vizinhança, com especial atenção à três personagens: João, um corretor de imóveis empregado num negócio familiar de seu avô Francisco; Bia, uma moradora local, dona de casa e mãe de dois filhos, que tenta superar a opressão de viver cercada por grades usando seus eletrodomésticos, seja para silenciar os cachorros da vizinhança, seja para inventar formas exóticas de recreação. Já Clodoaldo (Irandhir Santos) é o chefe da empresa de segurança a negociar com a autoridade local o serviço particular de proteção.

A exploração dos personagens é feita sob um olhar voyeur, objetivo, capturando com distanciamento seu objeto e, por isso mesmo, pretensiosamente realista. É por esse estilo de registro que observamos a negociação de João com uma senhora a pedir redução do aluguel de um imóvel cujo último proprietário cometeu suicídio, ou os recados amorosos escritos no pavimento, só para serem borrados pela chuva na sequencia seguinte. Com indiscrição espionamos os agarramentos de um jovem casal adolescente e as manias curiosas de Bia, que despacha os filhos para o inglês para ficar só, comprar maconha e se masturbar com a vibração da máquina de lavar.

Essas pequenas transgressões confrontam a mesmice do cotidiano de isolamento nos prédios, numa tentativa de lhe conferir mais sabor. Ao mesmo tempo, busca-se desenhar um perfil comportamental de classe média, diferente daquele idealizado pelos meios de mídia como sendo da elite, a qual a primeira buscaria imitar. Longe da higiene comportamental a prescrever uma relação familiar no momento da refeição, no jantar da família de Bia todos parecem estar com os pensamentos em outro lugar:  os filhos questionam a necessidade de aulas particulares de inglês quando já aprendem o idioma na escola. A menção faz Bia sorrir, talvez relembrando dos momentos propiciados por essa ausência. A discrepância fica explícita quando a câmera passa a enquadrar a televisão da sala ao lado, exibindo um balé de talheres e taças sob a harmonia de um jantar de gala.

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Os contornos da classe ficam mais evidentes na sugestão de sua natureza individualista e apática frente aos problemas alheios, como na famigerada reunião de condomínio em que os moradores discutem a demissão do zelador. O trabalhador é flagrado cochilando constantemente, e assim submetendo os inquilinos a grandes perigos, como o de receber sua Veja fora do saco. Apesar de idoso, em idade de se aposentar, sua atitude não é absolvida por eles, que o acusam de incompetência e desonestidade, já que estaria dormindo para apressar a demissão e o recebimento dos direitos. Incapazes de entender a situação por uma outra lógica que não a deles, quase decidem unanimemente pela demissão por justa causa quando João, o corretor, tenta fazê-los perceber a crueldade dessa resolução. João é logo contestado, mas não enfrenta os moradores, aproveitando o toque do celular para fugir da situação. Mesmo quando é capaz de pensar fora da caixa, a classe média de Mendonça Filho evita qualquer atrito político, exceto quando se trata de uma luta que lhe traga vantagens.

 Não podemos esquecer o som, utilizado aqui nos mais diferentes contextos e sempre enriquecedor à narrativa. Ampliando o volume de certos elementos o diretor pontua sentimentos, conduz nossa atenção e, principalmente, cria tensão. O ruído estridente da lixadeira elétrica demarca a presença de um trabalhador nas vizinhanças, assim como o eco de marteladas ouvido por Bruno, quando olha do terraço os edifícios cercados por uma favela crescente. É principalmente através do som que se demarca o conflito de classes, cujo ápice é representado na paranoia da classe média com a expectativa constante de uma revolta da “ralé”. Um dos maiores motivos para a auto reclusão, esta é explorada sombriamente num pesadelo da filha de Bia, no qual uma invasão dos favelados acontece no condomínio enquanto ela observa tudo, aterrorizada, da janela do quarto.

Mas a chave para a compreensão dessas tensões está no passado, e nesse sentido o pensamento de Kleber Mendonça é bem Freyriano. Se no prólogo o diretor nos mostra fotos antigas, entre elas a de um fazendeiro e sua multidão de dependentes, segurando papéis (títulos eleitorais?), no presente temos Francisco, coronel local, dono de quase todas as casas da vizinhança, paternalista, descendente de Senhor de engenho do interior. É em torno dele que se organizam as relações familiares, ele é a lei:  dá a palavra final sobre a instalação da equipe de segurança “contanto que não se metam com meu neto Dinho”, um “marginal bem nascido”. Desafia até a autoridade da natureza, tomando banhos à noite em áreas propensas à ataques de tubarão.

É também sintomático que o passado seja lembrado por estes personagens com nostalgia. Quando Francisco, seu neto João e a namorada visitam o engenho, rememoram com saudade o velho cinema em ruínas para depois se refrescarem numa queda d’água. Os moradores da casa grande parecem não lembrar-se da senzala, dos indivíduos escravizados que morreram construindo o patrimônio para outrem, e do suor de seus descendentes, cuja servidão permitiu a manutenção de riqueza e status por eles, através dos tempos. Mas o espectador não é furtado de ver todo o sangue em que estão encharcados.

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Eis o entrave a ser superado: O som ao redor questiona essa alienação do passado, evocando à classe média sua parcela de responsabilidade sobre a tensão e os problemas dos quais ela se esconde atrás dos muros do condomínio, relembrando que entre a construção histórica das desigualdades sociais do país e a acumulação de riqueza de alguns existe um passado em comum. E se o caminho sugerido para a superação principia com essa tomada de consciência, o recado para os que se mantém ignorantes é bastante claro: assim como Francisco, pagarão os juros da dívida. E se existe algo que poucos sairão sem perceber neste filme é que as grades não isentam nem protegem ninguém. 





Ficha Técnica: 
O som ao redor – 2012, 131 minutos.
Origem: Brasil.
Gênero: Drama, Thriller.
Direção|Roteiro: Kleber Mendonça Filho.
Fotografia: Fabrício Tadeu.
Edição de som: Pablo Lamar.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A viagem (Cloud Atlas) - 2012


A viagem (Cloud Atlas) – 2012, Cor, 172 minutos.
Origem: Alemanha, EUA, Japão, Singapura.
Gênero: Drama, Romance, Mistério, Ficção-Científica.
Direção: Tom Tykwer, Andy e Lana Wachowski.
Roteiro: Tom Tykwer, Andy e Lana Wachowski.
Fotografia: Frank Griebe e John Toll.
Trilha sonora: Tom Tykwer, Rinhold Heil e Johnny Klimek.
Lançamento no Brasil: 11 de janeiro de 2013.


Por Cleidson Lourenço

A viagem (Cloud Atlas), mais recente esforço dos irmãos Wachowsky, desta vez juntos a Tom Tykwer, é fascinante. Ainda que a realização não alcance plenamente a ambiciosa premissa, o resultado é mais que satisfatório tanto pelo saldo emocional quanto pelos questionamentos que suscita.

O roteiro, adaptação do romance homônimo de David Mitchell pelos diretores do longa, apresenta seis histórias de gêneros diversos, situadas em diferentes épocas e lugares, cruzando-as a partir de um princípio derivado de correntes religiosas, científicas e filosóficas, como a teoria do caos, princípio da ação e reação, física quântica, espiritismo e carma: todo ato de bondade, assim como todo crime, repercute através dos tempos, gera reações equivalentes e molda o curso dos acontecimentos. São histórias inicialmente interessantes, mas de decorrer previsível. Funcionam graças ao dinamismo da montagem, nos permitindo vislumbrar cada história tempo suficiente apenas para encontrar um gancho visual ou narrativo que nos empurre para a próxima.

A escolha de utilizar os mesmos atores em todas as histórias, aludindo à ideia de reencarnação, dá certa organicidade à narrativa. Alguns estão irreconhecíveis em suas transformações graças ao trabalho da equipe de maquiagem. Tom Hanks, Halle Berry, Jim Broadbent, Hugo Weaving, Jim Sturgess, Doona Bae e Ben Whishaw garantem boa parte do espetáculo, oferecendo performances esmeradas em papéis que variam não só em personalidade e idade, mas em fenótipo e até mesmo sexo. Assim, Tom Hanks personifica desde um médico inescrupuloso do século XIX a um cientista nuclear de meia idade nos anos 70, ou mesmo um sobrevivente numa precária sociedade pós-apocalíptica, sempre mantendo um nível de detalhamento sobrecomum em suas composições, considerando a quantidade de papéis que representa. Outras grandes atuações vêm de Jim Broadbent, Doona Bae e Hugo Weaving, que aqui interpreta todos os vilões da película.

Tom Hanks em seus vários papéis.
A eficiência da maquiagem na composição dos personagens é uma faca de dois gumes. Apesar de apresentar excelência na inserção de próteses e pequenos detalhes que ajudam a compor os personagens, a ousadia na transformação completa de fenótipo não é bem realizada, resultando num artificialismo escancarado, como no caso de Halle Berry interpretando a judia Jocasta Ayrs, caucasiana. Pontos de excelência técnica são a direção de arte e figurino, competentes em recriar estilos visuais de épocas históricas e em imaginar os cenários do futuro. Atenção especial à fascinante Neo Seul, onde a prevalência de um capitalismo em nível muito acentuado transparece em cada detalhe, como na arquitetura, estritamente funcional. Toda intervenção estética, mesmo a cor, é projetada por holograma sobre o concreto cinza.

Halle Berry como Jocasta Ayrs
             A trilha sonora, composta por Tom Tykwer com colaboração de Reinhold Heil e Johnny Klimek é riquíssima, passeia com maestria por extremos de uma narrativa que vai do histórico ao futurista e apresenta variações muito imaginativas do tema principal, um trabalho memorável que desde já entra para minha lista de favoritos. A fotografia segue a cartilha do épico, oferecendo planos gerais para destacar os belos e sofisticados cenários, closes para as acrobacias emocionais dos atores em seus vários papéis, planos detalhe para destacar elementos de ligação entre as narrativas. O maior truque é que estas ligações vão ficando mais explícitas ao decorrer do filme, de modo que em determinado momento as reviravoltas passam a acontecer em cadeia, e o clímax compartilhado é multiplicado por cada história.

"Eu não serei submetida ao abuso criminoso"

Por detrás de todas as camadas teóricas que misturam filosofia, ciência e religião na tessitura de uma trama capaz de emular a complexidade da vida, o ponto de discussão mais interessante da obra, contudo, é o ideológico. A viagem lida o tempo todo com dois extremos morais, um baseado na sobrevivência do mais apto expresso num darwinismo social cujo pináculo é uma versão extremada do capitalismo, que se choca com outro, de inspiração socialista, baseado num profundo senso de comunidade a pregar o pensamento de que nossas vidas não pertencem a nós mesmos, mas à coletividade. A narrativa se constrói sobre o confronto dessas ideias e a afirmação desse ideal subversor a nos incitar contra toda restrição à liberdade.

Localizemos a obra historicamente: num momento em que a conjuntura política mundial é instável, palco de lutas frequentes sendo travadas contra o cerceamento de direitos, não podemos fechar os olhos para a ousada mensagem da obra dos Wachowsky. Diferente de Matrix, aqui eles não barateiam filosofias em prol do desenvolvimento da história, mas moldam toda a arquitetura narrativa, sacrificando até o que poderia ter de mais complexo e enriquecedor do ponto de vista cinematográfico, para expandir a legibilidade dessa mensagem à sua audiência. Com muita honestidade, A viagem exemplifica o exercício de coragem que propõe a seu espectador.